ESTADO DE SÃO PAULO | IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO | 14/04/2017
Escrevo esta crônica com a esperança que seja lida por algum patrocinador cultural, um Sesc, por exemplo, enfim por quem se interessa pela cultura de inclusão, na expectativa que o espetáculo que vi, ano passado, possa voltar aos palcos, porque tem importância fundamental.
Já vi peças que me tocaram fundo, mexeram comigo. Poucas com o impacto de Do Outro Lado do Oceano, do grupo Ser em Cena (Teatro de Afásicos), direção de Elisa Band, assistência de Nicholas Wahba.
A história tem algo de Fellini, do E La Nave Va. Entram em cena cerca de cem pessoas, representando papéis variados. Esquetes (palavra antiga) rápidos ou fragmentos, palavra em moda, que contam uma viagem desde a chegada dos passageiros ao porto, a seleção dos viajantes, a passagem pela alf'ndega, a instalação a bordo e então a vida a bordo, em alto-mar, em variadas cenas cômicas e dramáticas, com direito a tempestades, trovões, raios, sereias, mitos marinhos, perigos.
Eu sabia que estava diante de atores não atores, todos pessoas com necessidades especiais. Não há um único profissional de teatro, ainda que alguns tenham sido músicos que perderam os movimentos, a voz, ou cantores, médicos, professores, donas de casa, jovens, velhos, maduros. Comecei com uma sensação de mal-estar diante da dificuldade que esta gente tinha para dizer o texto, andar, se equilibrar, dançar (imaginem), fazer o corpo girar, tocar instrumentos. Os movimentos lentos pareciam durar uma eternidade. Durou pouco a minha agonia, logo entrei no ritmo. Primeiro, temos que nos abstrair desse timing em que vivemos na sociedade moderna. Rapidez, velocidade, agito. Esqueça, crie dentro de você um timing novo para ver o espetáculo. Esta foi a primeira lição que senti. A descoberta da existência de outro ritmo, outro tempo. Adapte-se a ele, vem uma sensação de paz interior.
No início, eu queria terminar as frases, errei várias delas, me envergonhei, ri de mim, porque os diálogos levam ao inesperado. Outra lição: não sabemos mais ouvir as pessoas, nos antecipamos, sôfregos, Por quê? Para quê? Logo nos envolvemos no clima e vamos percebendo que aquelas pessoas possuem uma força tremenda para se superar, ultrapassar as limitações e viver “normalmente”. Superseres, a vida para eles significa esforço gigantesco a cada gesto, coordenação de músculos, nervos, células, que, muitas vezes, não respondem aos impulsos que o cérebro envia.
(...)Poético, dramático, há um clima surreal criado por Elisa Band, a idealizadora do espetáculo, que batalhou para colocá-lo de pé. Só que esse surreal é um recorte de nosso cotidiano. Do Outro Lado do Oceano é uma epopeia. Aplaudimos e nos entristecemos, rimos e gargalhamos porque em cena está o cotidiano, a crítica, a sátira política, a ironia, o amor, os desencontros. Entra em questão o que é normalidade, como vencer as limitações? Duvidamos de nossos conceitos, duvidamos do que é vida real. Aprendemos com essa peça a olhar para o outro sem preconceitos, sem julgamentos, a entrarmos no cotidiano de outros.
Estava a peça em meio e me veio a pergunta: o que eu faria se meu entender fosse, assim, privado de movimentos, de voz, raciocínio entrevado? Suportaria? Afinal, todos estamos sujeitos a tudo, por mais que a ciência tenha estudado nosso corpo, o imprevisível está à espera ao virarmos a esquina. Do Outro Lado do Oceano é uma peça que precisa voltar em temporada normal, disponível a todos os públicos. Se esses grandes musicais e comediazinhas têm incentivo, por que não também uma encenação como esta, bom teatro, direção, figurinos, iluminação impecáveis. Esta, meus leitores, é uma peça essencial. E você, caro Danilo Santos de Miranda, vá olhar, ouça seus excelentes auxiliares que têm visão aguçada. Leve Do Outro Lado do Oceano por todo Estado de São Paulo, pelo Brasil.