Coluna SP Escola de Teatro | Sergio Zlotnic | 21/12/2016
1 – Elisa Band é um dos grandes nomes da performatividade no teatro. Além de talentosa atriz, possuidora de espantoso instinto de palco, é também encenadora poderosa, capaz de impactar plateias.
Sua mais recente pesquisa põe mais de 60 atores e atrizes em cena, num inquietante espetáculo.
No passado – ao lado de outros trabalhos seus, que reúnem atores profissionais -, por décadas, juntamente com Cássio Diniz Santiago e outros colaboradores, Elisa Band experimentou articular psicose e teatro, colocando pacientes psiquiátricos no palco. Os resultados se descolaram da psiquiatria, desembocando em cenas teatrais que afirmavam a teatralidade dos atores, independentemente de sua condição. Explico.
Os diretores não reduziam o exercício a uma mera atividade destinada a distrair ou entreter pessoas “difíceis”, socialmente excluídas. Não se tratavam de jogos para animá-los, encorajá-los, fazer com que superassem obstáculos, ou percebessem o mundo com mais objetividade. Não havia ingenuidade ou pedagogia. O projeto desejava – e realizava – Teatro.
Nas experimentações, a psicose do elenco não era recusada; entretanto, os pacientes psiquiátricos se entregavam a um jogo teatral maiúsculo que, em qualidade, nada ficava a dever aos espetáculos de outras companhias das artes do palco, reconhecidamente valorizadas.
2 – Exemplo de um fragmento de cena.
Houve uma apresentação em que, para evitar estigmatizações, a pedido da trupe, a mídia omitiu o fato de que o elenco era composto por pessoas portadoras de distúrbios psiquiátricos. No meio da peça, uma das pacientes, bastante comprometida psiquicamente, atravessa o palco, com seu andar lento, torto e depauperado. E sincero! Ao final, um espectador procura os diretores para saber: quantos anos de butô essa atriz teria praticado? Teria sido no Japão mesmo que ela se especializou na dança de sombras?
3 – Em recente palestra na SP Escola de Teatro, Elisa Band conta que para trabalhar com ela há apenas uma condição: é necessário que o ator/atriz saiba fazer e repetir um único gesto. Se, como no caso do butô, tudo que a atriz pode fazer é atravessar o palco, na diagonal, caminhando vagarosa e claudicantemente, esta será a sua participação, ao mesmo tempo, minúscula e enorme.
Parêntese. Intrigante pensar a psicose como impossibilidade de repetir, redução drástica do arsenal de redundâncias banais, que submetem os neuróticos às gramáticas sociais.
Na ocasião, as investigações de Elisa Band, Cássio Diniz Santiago e colaboradores, sob coordenação de Peter Pál Pelbart, iluminaram a psicose – e, simultaneamente, iluminaram o teatro, fazendo-nos interrogar no que consiste, na essência, a arte de interpretar. Em paralelo, o conceito de representação era mais uma vez posto em xeque.
4 – Agora, a ONG Ser Em Cena, que se dedica a desenvolver atividades de teatro com pessoas afásicas, numa feliz escolha, convidou Elisa Band a dirigir o espetáculo Do Outro Lado Do Oceano, que estreou no Teatro Frei Caneca, em 28 de novembro próximo passado. E, então, novamente, pode-se conferir o talento da diretora, a qualidade da encenação e a força do coletivo.
Aqui também a potência da pesquisa instaura um campo em que a condição dos personagens envolvidos não é nunca negada, porém, desde o início, deixa de importar – convertida em mera circunstância.
Elisa Band mistura seus atores afásicos, com outros que não carregam essa insígnia (não-afásicos). Distingui-los no palco é frequentemente impossível.
A diretora aproveita o modo particular com que o afásico habita a linguagem, seu repertório, para montar 21 cenas curtas, algumas de rara beleza. A ocupação do palco, o aproveitamento do espaço, distribuem as ações de maneira a criar vinhetas memoráveis, numa viagem imaginária por oceanos prenhes de estranhas criaturas.
Cada cena ganha uma legenda escrita, como se estivéssemos assistindo a um filme antigo, cifra, aliás, do estilo da diretora: suas pesquisas sempre promovem choques entre estéticas heterogêneas, emblemas de múltiplas épocas, que as antenas de Band captam.
A diretora conta com uma equipe competente – e há evidente criação coletiva; entretanto, também é evidente que Elisa Band está ali visceralmente envolvida em cada detalhe: trilha sonora, figurino, direção de atores, dramaturgia… Hercúlea tarefa, a de dar conta dessa pluralidade de variáveis, regendo 65 atores no palco!
De nossa poltrona de espectadores, assistimos a um caleidoscópio de cores, luzes e ações. Muitas vezes, são apenas gemidos e grunhidos e urros e mímicas e gestos, usados para criar conversas sem palavras que compõem uma língua fictícia, inexistente do dicionário oficial – porém cheia de sintaxes e semânticas e lirismos. É produção de linguagem o que se vê ali.
5 – Nesse jogo, algo notável se dá: os atores deixam de ser afásicos – sem deixar de sê-lo! As afasias se tornam coadjuvantes. Pois a sua língua peculiar – desviante – pousa noutro léxico: o da cena teatral. Ali, suas singularidades e equívocos ganham lugar e legitimidade. Ali, a língua do afásico flutua com toda liberdade.
Assim, o trabalho de Elisa não atenua as marcas de cada um de seus atores, mas ao contrário, estratégia genial, ela sublinha e aproveita cada lesão, para fazê-la dizer outra coisa no palco.
Desse modo, o espetáculo, involuntariamente, talvez, acaba por destacar as nossas afasias particulares, as de cada um de nós, espectadores, limitados por nossa anatomia, nossas barreiras pessoais, história, cacoetes, sotaques e constrangimentos. Seríamos sete bilhões de afásicos?
6 – Por não achar que o teatro conserta ninguém, é admirável mais este trabalho de Band. Com seus afásicos/atores, procede a um concerto. Emocionante!
7 – A peça terminou no dia 15 de dezembro de 2016. Queiram os deuses do teatro que ela volte neste ano.